- Artigo de Karina Nunes Fritz -
STJ pacifica a jurisprudência e fixa prazo prescricional de dez anos para responsabilidade contratual
Karina Nunes Fritz[1]
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça pôs fim a uma celeuma que vinha causando grande insegurança jurídica no mundo negocial: a aplicação do prazo prescricional de três anos a indenizações resultantes de violações contratuais.
Acompanhando o voto da Min. Nancy Andrighi, a 2a. Seção do STJ, responsável pela uniformização da jurisprudência das turmas de Direito Privado, consolidou o entendimento de que o prazo prescricional para discutir questões contratuais é de dez anos, conforme o art. 205 do Código Civil.
Trata-se de Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.280.825/SP, julgado em 27.06.2018, no qual a associação dos aposentados, pensionistas, empregados ativos e ex-empregados da Companhia Vale do Rio Doce (Apevale) discutia o cabimento de indenização contra o Clube de Investimento dos Empregados da Vale (Investvale) com base em administração fraudulenta e omissão de informações, que deram causa à venda de papéis da companhia por preço inferior ao do mercado.
Em sua defesa, a Investvale alegou, dentre outras coisas, a prescrição da pretensão dos pensionistas, vez que a ação fora proposta quando já esgotado o prazo prescricional de três anos do art. 206, § 3, inc. V do Código Civil. Mas o STJ, analisando os Embargos de Divergência, afastou a aplicação do prazo trienal aos casos de perdas e danos oriundas de relações contratuais.
A rigor, o Tribunal nada mais fez que reafirmar o entendimento pacífico, consolidado durante décadas, que distinguia os regimes de responsabilidade contratual e extracontratual e, consequentemente, aplicava prazos prescricionais distintos às pretensões oriundas do inadimplemento de contratos (dez anos) e as geradas por danos extracontratuais (três anos).
O ponto fora da curva veio realmente em 2016, com o REsp. 1.281.549/SP, quando a 3a. Turma do STJ entendeu por bem aplicar o prazo trienal à ação indenizatória em que se discutia perdas e danos decorrentes de descumprimento contratual[2]. A partir daí, alguns julgados passaram a aplicar o prazo da responsabilidade extracontratual, consagrado no art. 206, § 3o., inc. V do Código Civil, a pedidos de indenização decorrentes de violações contratuais, em claro arrepio ao texto da lei e à tradição jurídica, que desde o Código de 1916 reservava prazos distintos para pretensões contratuais e extracontratuais.
Em defesa da nova tese, argumentou-se que o Código de 2002 não distinguia as duas categorias de responsabilidade, encontrando-se ambas abrangidas pela expressão “reparação civil” do art. 206, § 3o., inc. V do CC2002, embora o direito brasileiro tradicionalmente reserve a expressão “responsabilidade civil” para expressar a reparação civil de danos causados por atos ilícitos strictu sensu, decorrentes da ofensa a bens jurídicos absolutos e “inadimplemento” ou “responsabilidade contratual” para designar violações contratuais[3].
Aduziu-se ainda que a aplicação do prazo trienal às pretensões contratuais harmonizava-se mais com a orientação do Código de encurtar os prazos prescricionais. Além disso, seria incoerente permitir que os particulares – leia-se: em regra, empresas – tenham dez anos para discutir em juízo suas pretensões contratuais enquanto os consumidores, vulneráveis por força de lei, só dispõem de cinco anos, nos termos do art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. Sustentou-se até que o tratamento diferenciado dispensado a ambos os regimes ofenderia o principio constitucional da igualdade[4].
Como fundamento doutrinário para a mudança repentina da jurisprudência, a 3a. Turma elencou, ainda, o Enunciado 419 do Conselho da Justiça Federal, aprovado, em 2011, durante a V Jornada de Direito Civil, segundo o qual “o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual”.
Depois da decisao de 2016 (REsp. 1.281.549/SP), várias decisões – inclusive de tribunais inferiores – passaram a considerar prescritos os pedidos ressarcitórios dos contratantes que só haviam acionado a contraparte após decorrido três anos do descumprimento contratual, causando graves prejuízos aos jurisdicionados que até então confiavam – legitimamente, diga-se – na constância da jurisprudência. Aumentando a insegurança jurídica nessa área tão sensível do mercado, a 4a. Turma, continuava a aplicar o prazo decenal aos contratos, de forma diversa, pois, do entendimento da 3a. Turma do mesmo Tribunal.
Embora aparentemente sedutores os argumentos dos defensores da unicidade do prazo prescricional, fato é que eles não se sustentam, como agora reconheceu majoritariamente o STJ. Não há nenhuma afronta ao princípio constitucional da isonomia em o legislador reservar prazos prescricionais distintos para os casos de violação contratual e cometimento de ato ilícito stricto sensu, pois os deveres ofendidos nos dois casos são distintos: de um lado, tem-se a infringência a um dever relativo existente entre partes determinadas (contratantes) e, de outro, a violação ao dever erga omnes de não lesar bem jurídico absoluto, como nos casos de ofensa a honra ou acidentes de trânsito, nos quais a integridade corporal e/ou o patrimônio da vítima são atingidos.
Além disso, no primeiro caso, as partes estão ligadas por uma relação jurídica pré-existente ao dano, vale dizer, elas se encontram em uma situação de “contato negocial”, em função da qual nasce para as mesmas uma gama de deveres obrigacionais, enquanto no segundo inexiste qualquer vínculo antes do evento lesivo entre lesante e lesado que, por isso, encontram-se na esfera do chamado “contato social”. Essas circunstâncias justificam, por si só, que a lei trate as duas situações lesivas de forma diferente, o que ocorre, aliás, desde o Direito Romano.
Se afronta a princípio constitucional da igualdade existisse, a maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais padeceria desse vício, pois Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, reservam prazos prescricionais distintos para ambos os tipos de responsabilidade. É bem verdade que na Alemanha, desde a reforma do Código Civil (BGB) em 2002, o prazo prescricional ordinário foi drasticamente reduzido de trinta para apenas três anos e nesse lapso temporal prescrevem – à exceção dos casos sujeitos a prazo específico – tanto pretensões contratuais, quanto pretensões extracontratuais.
Mas isso se dá por força de expressa disposição legal (§ 195 BGB/2002). Até então, contudo, a jurisprudência alemã aplicava rigorosamente o prazo de trinta anos (§ 195 BGB/1900) para os casos de violações contratuais, inclusive ofensas aos chamados deveres (relativos) de conduta ético-jurídicos, e o de três anos (§ 852 BGB/1900) para os casos de ato ilícito stricto sensu, respeitando a decisão do legislador em tema tão fundamental para a segurança jurídica e a pacificação social.
E, mesmo lá, a despeito da unificação dos prazos prescricionais, ninguém sustenta a unicidade das duas categorias de responsabilidades, como faz a teoria ora implicitamente abandonada pelo STJ ao reconhecer a distinção entre os prazos. A doutrina germânica majoritária aponta, inclusive, para a existência de um terceiro gênero de responsabilidade civil, situado entre o contrato e o delito. Trata-se da chamada responsabilidade pela confiança (Vertrauenshaftung) que, pela falta de reconhecimento legal e pelas similitudes que apresenta, submete-se ao regime da responsabilidade contratual[5].
Assim, percebe-se lá, na verdade, uma ampliação do campo de incidência da responsabilidade contratual e não seu encolhimento, como ocorre quando se abraça a tese da responsabilidade una, que fora, ao menos aparentemente, encampada pelas decisões – ora superadas – da 3a. Turma do STJ.
Com a maxima venia às opiniões em contrário, parece que a ideia de uma responsabilidade unitária, a unificar os regimes da responsabilidade contratual e extracontratual, é extremamente questionável e não encontra amparo na lei e nem na melhor doutrina europeia. Até a doutrina portuguesa, antes simpática à tese, vem mudando de opinião e admitindo a existência do terceiro gênero, pois percebeu que o Direito progride diferenciando suas soluções[6].
O mesmo ocorre na Itália, onde a Corte di Cassazione reconheceu o terceiro gênero em caso versando sobre a responsabilidade pré-contratual do poder público pela celebração de contrato nulo com um particular. Na decisão, a Corte italiana, seguindo os passos da doutrina moderna, fez referência expressa a um terceiro gênero de responsabilidade, situado entre o “contratto e torto”, o qual, contudo, está bem mais próximo do primeiro que do segundo[7].
Além disso, deve-se observar que a unificação do prazo prescricional contraria a lógica interna do sistema contratual do nosso Código, pois ter-se-ia que conceder ao credor lesado o prazo de dez anos para exigir o cumprimento da prestação, mas apenas três anos para pleitear perdas e danos em decorrência da mora ou, em caso de inadimplemento definitivo, dez anos para pleitear a execução pelo equivalente ou a resolução contratual e três anos para reclamar perdas e danos. O mais lógico e coerente, como pontuado por Judith Martins-Costa e Cristiano Zanetti, é conceder o prazo único de dez anos para o contratante lesado acionar os mecanismos que a lei lhe confere em caso de violação contratual[8].
Dessa forma, a tese adotada no REsp. 1.281.549/SP pela 3a. Turma do STJ parece, data maxima venia, andar na contramão da história ao buscar reunificar – contra legem – o que a peculiaridade impõe distinguir. E, nesse sentido, a recente decisão uniformizadora, revelada nos Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.280.825/SP, é um ganho teórico e prático importante, pois restaura a coerência e harmonia do sistema, bem como a segurança jurídica nos negócios.
Não se diga, também, que o regime unificado do art. 206, § 3o., inc. V do CC2002 estaria em harmonia com o sistema consumerista ou que teria corrigido a anomalia surgida após a promulgação da Lei do Consumidor, em que o prazo quinquenal do art. 27 do CDC destoava do prazo vintenário do Código Bevilaqua[9], pois todos sabem que o Código de 2002 foi elaborado em linhas diversas e até mesmo alheias ao Código de Defesa do Consumidor[10], sendo distintas, inclusive ideologicamente, as relações jurídicas que ambos visam regrar. É até tautológico reconhecer que não há igualdade entre situações que são e devem ser desiguais.
E se o consumidor tem um prazo – menos favorável – de cinco anos para deduzir em juízo suas pretensões contratuais, tem, em compensação, inúmeras vantagens em relação aos particulares, como a dispensa da prova da culpa, a presunção de vulnerabilidade, inversão do ônus da prova, controle judicial do conteúdo (cláusulas) do contrato, além de um rol de direitos básicos, que, em princípio, inexistem nas relações paritárias, exceto quando há assimetria estrutural entre as mesmas.
Tudo isso coloca o consumidor em posição mais vantajosa em relação aos demais. Não à toa, o Judiciário brasileiro vem há tempos ampliando o conceito de consumidor para incluir fornecedores em situações de “vulnerabilidade”. E, por fim, trata-se, à toda evidência, de um sistema jurídico específico e distinto do Código Civil, de forma a desautorizar qualquer equiparação.
E, por fim, quanto ao argumento sobre a tendência ao encurtamento do prazo prescricional, o vigente Código Civil reduziu significativamente – em comparação ao previsto no Código de 1916 – os prazos para ambas as espécies de responsabilidade: de vinte para dez anos, como regra, na responsabilidade contratual e de dez para três anos, na responsabilidade extracontratual.
Em suma: com a recente decisão nos Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.280.825/SP, o STJ põe fim à controvertida unificação das responsabilidades contratual e extracontratual, respeitando o regime jurídico de cada uma, criado pelo legislador. Isso tem importantes reflexos para o mercado na medida em que a aplicação do prazo trienal aos casos de responsabilidade civil gerada por inadimplemento contratual afetava em cheio os contratos empresariais, nos quais as partes tendem a buscar – em função da longa relação comercial muitas vezes existente entre elas ou por mera conveniência – uma solução amigável para problemas surgidos no desenrolar do contrato, o que requer tempo para negociação e consenso.
E a exigência de exíguo prazo prescricional forçaria o contratante a agir o quanto antes para fazer valer seus direitos por meio de protestos, constituição em mora ou qualquer modo apto a interromper a prescrição, nos termos do art. 202 do CC2002, o que nem sempre é a melhor solução face à relação comercial existente entre as partes. Além de azedar as relações comerciais, com o curto prazo prescricional corre-se o risco de estimular a judicialização de conflitos em detrimento de soluções amigáveis.
A partir de agora, contudo, está plenamente reconhecido que o contratante tem o prazo de dez anos para reclamar da contraparte perdas e danos em casos de descumprimento dos deveres prestacionais (inadimplemento definitivo, mora, cumprimento defeituoso) e também dos deveres laterais de conduta, oriundos da boa-fé objetiva (violação positiva do contrato)[11], salvo nas hipóteses em que o próprio Código Civil prevê prazos especiais. Com a decisão, o STJ preserva a distinção entre os sistemas de responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual (a despeito de eventuais pontos de intersecção entre as espécies), garantindo coerência ao sistema e segurança jurídica aos jurisdicionados.
[1] Professora, Consultora e Parecerista do Bodin de Moraes, Vilela & Fernandes Advogados. Doutora pela Humboldt Universität, Berlim (Alemanha). LL.M na Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg (Alemanha). Mestre em Direito Civil (PUCSP).
[2] REsp. 1.281.594/SP, T3, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22.11.2016, DJe 28.11.2016.
[3] Dentre outros: ESPÍNOLA, Eduardo. Sistema do direito civil brasileiro, vol. 2, t. 2. 2a. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945, p. 220 ss.; GOMES, Orlando. Obrigações. 14a. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 256 e THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao código civil, vol. 3, t. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 333.
[4] Cf. REsp. 1.281.594/SP, p. 12. No mesmo sentido: TEPEDINO, Gustavo. A prescrição trienal para a reparação civil. Carta Forense, 01.07.2009, p. 1.
[5] Cf. a paradigmática obra de Claus-Wilhelm Canaris intitulada Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht, Beck, München, 1971.
[6] Nesse sentido, sintomática é a mudança encontrada em António Menezes Cordeiro, que, outrora defensor da tese unitária, hoje alenca uma série de distinções (ontológica, funcional, estrutural, sistemática) entre as duas categorias, salientando expressamente a necessidade de superação da corrente unitária (Tratado de direito civil português. vol. 2, t. 3. Coimbra: Almedina, 2010, p. 390 ss.), acabando, ao final, por reconhecer a existência do terceiro gênero, tal como sustentado por Canaris. Op. cit., p. 398 ss.
[7] Veja-se a sentença: Corte di Cassazioni n. 14.188, de 12.07.2016, Prima Sezione. Na doutrina italiana contemporânea, confira-se, dentre outros: CASTRONOVO, Carlo. La nuova responsabilità civile, 3a. ed., Milano: Giuffrè, 2006. Aliás, entre nós, Antonio Junqueira de Azevedo já intuiu, nos idos de 90, a existência de um terceiro gênero de responsabilidade civil. Cf. Responsabilidade pré-contratual no código de defesa do consumidor: estudo comparado com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Revista de Direito do Consumidor 18, 1996, p. 23.
[8] MARTINS-COSTA, Judith e ZANETTI, Cristiano. Responsabilidade contratual: prazo prescricional de dez anos. RT Online 2017, p. 5. No mesmo sentido: NALIN, Paulo/MANASSÉS, Diogo Rodrigues. Responsabilidade civil extracontratual e contratual: razões e funções da distinção, in: TEPEDINO, Gustavo/FACHIN, Luiz Edson/LÔBO, Paulo (coord.). Direito civil constitucional – a ressignificação da função dos institutos fundamentais do direito civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito, 2014, p. 350 s.
[9] TEPEDINO, Gustavo. A prescrição trienal para a reparação civil, p. 1.
[10] Nesse sentido: TEPEDINO, Gustavo. O novo código civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira, p. 359 e Os contratos de consumo no brasil, p. 133, in: Temas de direito civil, vol. 2, Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Essa constatação é atestada até por estrangeiros estudiosos do direito brasileiro. Cf., nesse sentido: SCHMIDT, Jan-Peter. Zivilrechtskodifikation in Brasilien. Tübingen: Mohr Siebeck, 2009, p. 232 s.
[11] No AgInt no AgRg no AREsp. 267726/SP, T4, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 18.10.2016, DJe 24.10.2016, o STJ decidiu que em se tratando de responsabilidade civil derivada do não cumprimento dos chamados “deveres anexos ao contrato”, sua natureza é contratual, a ensejar a aplicação da norma residual do art. 205 do CC/2002.
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